fonte: http://www.conic.org.br/cms/noticias/944-dia-da-consciencia-negra-entrevista-com-marcelo-barros
Dia da Consciência Negra: entrevista com Marcelo Barros
Qui, 20 de Novembro de 2014 01:27 |
O Brasil celebra hoje, 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. A data faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares – situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, na região Nordeste do Brasil. Zumbi foi morto em 1695, na referida data, por bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho.
O dia de sua morte, descoberta por historiadores no início da década de 1970, motivou membros do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um congresso realizado em 1978, a elegerem a figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos que seus descendentes reivindicam ainda nos dias de hoje.
Desde Zumbi, a realidade do negro no Brasil mudou bastante, mas as disparidades continuam. Por exemplo: entre os jovens assassinados, 77% são negros (saiba maisaqui). No mundo do trabalho, dados mostram que um trabalhador negro no Brasil ganha, em média, pouco mais da metade (57,4%) do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca (confira aqui). E por aí vai…
É por estas e outras que a luta por mais igualdade não pode parar.
Aproveitando o ensejo, o CONIC fez uma entrevista com o monge Marcelo Barros. O bate-papo abordou, entre outros temas, a perseguição que religiões com raízes africanas (como o Candomblé e a Umbanda) ainda sofrem no Brasil; o papel do poder público, cotas, além de seu mais novo livro, “Na Casa de meu Pai há muitas moradas – Conversas com um pastor pentecostal sobre a Bíblia e outras religiões” *.
CONIC: Qual é a importância de se comemorar esta data no Brasil, um país forjado por mãos de escravos, mas que, em pleno século XXI, custa aceitar o papel do negro na construção da nação?
Marcelo Barros: A importância da comemoração do 20 de novembro como dia da união e consciência negra é a de estimular a memória histórica da luta pela libertação dos negros nos quilombos para que esse mesmo espírito continue e se fortaleça hoje. 20 de novembro já é feriado municipal em mais de mil cidades brasileiras e mesmo onde ainda não é, essa data já ajuda para revelar a importância das culturas afrodescendentes na identidade e na unidade do povo brasileiro.
CONIC: Ainda hoje vemos atitudes onde o negro é desrespeitado de todas as formas. Exemplo claro é a cruzada empreendida por algumas igrejas pentecostais e neopentecostais contra terreiros e líderes religiosos de religiões de matriz africana. Como combater isso?
Marcelo Barros: De acordo com a lei brasileira, desrespeito e discriminação são crimes e podem ser castigados. É preciso que os ataques e atos de perseguição aos cultos afro sejam punidos. Infelizmente, a lei pode punir os desrespeitos, mas não pode ensinar a amar. Isso só a cultura pode fazer. É preciso substituir a cultura fundamentalista e preconceituosa por uma visão espiritual aberta a inclusiva.
CONIC: E onde entra o poder público neste combate?
Marcelo Barros: Embora o Brasil seja um país leigo e aberto a todas as expressões religiosas, ainda convive com muitas discriminações. O governo tem feito um grande esforço para mudar isso.
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República tem uma comissão nacional que trabalha pela diversidade religiosa e contra as discriminações. ASecretaria de Igualdade Racial tem feito um trabalho excelente e, em cada estado, o governo tem tentado implementar uma educação que ajude a combater a discriminação e possibilitar o diálogo.
CONIC: No Brasil, a exemplo de vários outros países mundo afora, o sistema de cotas tem tido excelentes resultados. Na sua opinião, porque ainda vemos casos como o daquele professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Manoel Luiz Malaguti, que afirmou: “se tivesse que escolher entre um médico branco e um negro, escolheria o médico branco”?
Marcelo Barros: O imaginário proposto pelos meios de comunicação ainda é o colonialista e ocidental. Quando os médicos cubanos chegaram no Brasil, através do programa Mais Médicos, houve quem dissesse que não confiaria em uma médica que tinha cara de empregada doméstica, isto é, era negra ou mulata. Isso é lamentável, mas vamos precisar de tempo para mudar essa tragédia.
Atualmente, pela primeira vez na história, a TV Brasil está veiculando uma novela angolana onde todos os personagens (galã e mocinha) são negros… Vamos ver como serão aceitos. Não sei quantos gerentes de banco são negros, quantos administradores/as de empresa, quantos bispos, quantos senadores, etc. Temos de mudar isso.
CONIC: Recentemente, você lançou o livro “Na Casa de meu Pai há muitas moradas – Conversas com um pastor pentecostal sobre a Bíblia e outras religiões”. De que modo a leitura e o aprofundamento nas questões trazidas nesta publicação podem ajudar na construção de um Brasil mais tolerante?
Marcelo Barros: Como os pastores e líderes de grupos pentecostais que atacam os cultos afrobrasileiros usam a Bíblia como pretexto, é importante mostrar que se pode fazer uma outra leitura da Bíblia. Para isso, eu escrevi dez conversas com um pastor pentecostal sobre a Bíblia e outras religiões para mostrar que ninguém tem o direito de usar a Bíblia como motivo para ser preconceituoso e racista.
Existem pessoas e grupos que têm essa visão fundamentalista e fanática porque nunca tiveram ocasião de pensar diferente. Esse livro possibilita isso: ler a Bíblia de modo ecumênico e amoroso…
CONIC: Que recado você gostaria de deixar para nossos leitores por ocasião deste 20 de novembro?
Marcelo Barros: No Brasil, as Igrejas, tanto a Católica como as evangélicas, têm uma dívida moral e histórica com as comunidades afrodescendentes e suas religiões. Durante séculos, a escravidão e a discriminação contra os negros e índios usaram a Deus e o Cristianismo como desculpa. Padres e pastores pregavam contra as religiões negras. Por isso, penso que, atualmente, esta luta contra a discriminação e pela valorização das religiões afrodescendentes que foram tão importantes para a resistência do povo negro não pode ficar só com as organizações negras e com o Estado. As Igrejas deveriam se comprometer nessa luta. Fico muito contente em ver que o CONIC está nesse caminho. Sonho em ver o dia em que padres e pastores passarão a ser ativos defensores das religiões negras, atuando contra a discriminação que essas sofrem até hoje em nome de Deus. Só então, bispos, padres e pastores estarão realmente testemunhando aos negros que Deus é amor.
* O livro foi lançado pelo CONIC, com o com o apoio da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço), através da editora do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos).
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