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Relato de vivência na Escola Pluricultural Odé Kayodê e Vila Esperança

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Romulo Rother Gil, Educador Popular e Pesquisador Cultural, esteve na Vila em setembro

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Estive na Vila Esperança e Escola Pluricultural Odé Kayodê durante os dias 11, 12, 13, 14 e 15 de Setembro de 2018, foi a realização de um sonho que nutria desde 2012, quando “conheci” ambos projetos pela internet. Tudo começou quando em meados de 2012 abandonei o curso de formação em Pedagogia Waldorf pela metade depois de perceber tamanha distância entre tal teoria e prática educativa e a realidade (socioeconômica, étnico-racial, histórica, cultural, educativa) brasileira. A decisão de abandonar o curso não foi a única, aliada e alinhada à ela estava a ânsia por encontrar uma “Pedagogia Brasileira”, assim o fiz! Corri pro Google e pra minha feliz surpresa não encontrei uma mas dezenas de experiências educativas que desenvolviam com crianças, jovens, adultos práticas que poderiam ser batizadas como “Pedagogias Brasileiras”. Nessa busca reencontrei-me com Paulo Freire – autor que já havia lido muito antes e com quem tanto simpatizava – e me (re)encantei por ele, pela profunda humanidade presente em seus escritos, passando a mergulhar fundo em seu legado e a iniciar-me como Educador Popular em projetos de Organizações Sociais desenvolvidos com crianças e jovens na periferia de Curitiba e em algumas regiões rurais metropolitanas à capital paranaense. De projeto em projeto e com uma graduação recém iniciada e pouca grana a decisão de viajar pelo país para conhecer de perto as escolas e projetos que eu havia encontrado pela internet foi sendo adiada até que 2013 tornei-me pai. O nascimento de meu primeiro filho trouxe a necessidade de vivenciar práticas educativas pensadas a partir do nosso chão, do nosso povo e cultura novamente, só que desta vez mais forte. Foi então que em fevereiro de 2014 fui até São Paulo para conhecer três dos projetos que tanto me encantavam e inspiravam: Te-Arte; Casa Redonda Centro de Estudos e OCA – Escola Cultural; as duas primeiras escolas de educação infantil particulares e a última uma ONG que desenvolve o que eu chamo de “Alfabetização Cultural” com crianças e jovens de Carapicuíba. A experiência superou minha expectativa, adubando a vontade de conhecer as outas escolas e projetos. Em conversa com Therezita Pagani, fundadora da Te-Arte, contei-a toda essa história e sobre os planos de abrir uma “Escola” (espaço de brincar para a Primeira Infância) e então ela me disse que sentia como mais necessária e urgente a sensibilização e capacitação dos educadores e educadoras que a criação de novas escolas pois essas já existem aos montes e na grande maioria delas estão educadores e educadoras desmotivados e despreparados, que não conhecem nem um tiquinho da Cultura Brasileira e da Cultura da(s) Criança(s); de fato não havia e infelizmente ainda não há como discordar dela. Sua fala plantou uma semente em mim: a vontade de compartilhar com educadores e educadoras de todo o país a tamanha riqueza de experiências educativas que eu havia encontrado em minha pesquisa online e de colocar em pauta a reflexão sobre a necessidade de que a Educação de nossas crianças e jovens seja pensada a partir de suas realidades, a partir de nós mesmos, de dentro para fora; questão ao mesmo tempo tão óbvia, evidente, necessária e urgente quanto despercebida (ou seria invisibilizada?!?) nas discussões sobre a Educação nacional até então. Exatamente quatro anos e um mês depois essa vontade se concretizou e em março de 2018 fiz a primeira viagem de campo desse projeto batizado como “A Cabeça Pensa Onde os Pés Pisam”. Na contramão daqueles pesquisadores dotados da soberba acadêmica eu me coloco como um Pesquisador-Aprendiz pois sei que tenho muito mais a aprender com os educadores, educadoras, crianças e jovens das escolas e projetos que estou visitando do que a ensinar. Na Escola Pluricultural Odé Kayodê aprendi a fazer farinha, a brincar de “O Chão é Lava” e a brincar de “Três Marinheiros” e pude comprovar o que de longe já sentia e suspeitava a respeito da experiência da EPOK: é possível construir e efetivar uma Educação que subverta a lógica dominante (patriarcal, machista, coronelista, branca, cristã, racista e heteronormativa) que ainda impera nos currículos de mais de 90% das escolas presentes em território nacional. Me encantei profundamente por essa Escola verdadeira e inteiramente Intercultural onde a riqueza da cultura legada pelos povos originários e verdadeiros donos dessas Terras e pelos povos negros sequestrados de seu chão e trazidos para cá como escravos é vivida diariamente e expressa inclusive na arquitetura. E que arquitetura! Enquanto passeava pela Vila Esperança tive a sensação de me esquecer sobre o fato de estar em uma Escola ou mesmo em um Espaço Cultural, senti-a me em uma Aldeia ao mesmo tempo ameríndia e africana e ao mesmo tempo num quilombo. Penso que essa seja propositalmente a ideia dos fundadores e das fundadoras dessa experiência: recriar no tempo e no espaço outras possibilidades de sociabilidade humana e de relação entre a humanidade e a Natureza que não as postas pela “lógica (patriarcal, machista, coronelista, branca, cristã ,…) do conquistador”. Aí consiste outra grande potencialidade da EPOK: uma pedagogia e um currículo que possibilita, no dia a dia, a Ecologia dos Saberes. Boaventura de Sousa Santos diz que para reinventar o poder é preciso antes descolonizar os saberes e para mim essa é a grande missão da Educação brasileira. Se esta vem sendo utilizada como instrumento de manutenção do status quo, da “lógica do conquistador” e do complexo de vira-lata ela pode (E DEVE!) tomar outro rumo passando a desempenhar seu verdadeiro papel que é a emancipação. A experiência da Odé Kayodê é um grande exemplo de que essa emancipação (política, socioeconômica) que passa obrigatoriamente pela via da Ecologia dos Saberes e da descolonização das subjetividades, identidades e epistemologias é possível e que só não é feita por quem ignora ou não se importa e não quer. Penso que vocês poderiam explorar outros territórios do fazer Educação e fazer Cultura e ocupar outros e novos espaços. Uma projeto tão potente e sensível, dotado de uma concepção pedagógica enraizada na Cultura Brasileira e com mais de quinze anos de experiência concreta e reconhecida (pela Rede de Escolas Transformadoras e outros prêmios, por exemplo) tem a legitimidade para inspirar e apontar caminhos e possibilidades pedagógicas para educadores e educadoras e mesmo para a formulação de políticas públicas para a Educação brasileira; seja através da criação e compartilhamento de materiais direcionados para Educadores e Educadoras ou mesmo materiais didáticos para crianças e jovens como também da atuação da EPOK junto à coletivos e movimentos sociais que pautam a transformação das escolas em instituições mais humanizadas e humanizadoras, integradas ao Território e à Comunidade a qual pertencem e da transformação dessa pedagogia obsoleta que insiste em fazer-se hegemônica para uma verdadeira Pedagogia, que contemple o sentido original da palavra (“conduzir a criança”, uma condução que faz a inteireza do seu Ser emergir de dentro para fora para atuar no mundo), que faça sentido para os educandos. Um exemplo de movimento/coletivo que vai nesse sentido é o CONANE (Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação), mas existem outros também. Por falar na intersecção entre a Educação e os Movimentos Sociais…foi incrível presenciar a apresentação das crianças da EPOK no Grito do Cerrado e ainda mais fascinante a experiência da Farinhada/Escola na Roça, que acontece dentro de um Assentamento. Sinto que essa é uma prática pedagógica muito positiva porque propicia ao mesmo tempo a integração das crianças com a natureza e com uma prática tradicional do povo do campo quanto uma proximidade com a cultura deste povo e inclusive com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra possibilitando um olhar diferente daquele que é implantado pela mídia sobre esse movimento e sobre a dignidade de sua luta. Nesse sentido comparo a EPOK como um Movimento Social, um movimento que pauta uma outra educação, a garantia dos direito das crianças e adolescentes, a valorização da Cultura Brasileira, o cuidado com a (Mãe) Terra e sua preservação para as futuras gerações, a justiça e emancipação social. Pra mim a Educação de e na verdade é isso, um Movimento Social, um instrumento de luta, resistência e principalmente libertação, emancipação, sensibilização e humanização. Tão bela quanto à Cultura Brasileira e sua diversidade de manifestações (Cultura Afrobrasileira, Culturas Indígenas, Cultura do Povo do Campo) são as (re)significações e reinvenções que as crianças que compõe cada um desses grupos realizam de sua própria Cultura. As crianças possuem uma dimensão, um universo simbólico próprio e exclusivo, a qual os adultos dificilmente tem acesso. Em minha pesquisa para o Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Ciências Sociais realizei uma experiência com as crianças Mbya-Guarani de uma Aldeia localizada na região metropolitana de Curitiba e com elas aprendi sobre a Cultura Mbya e sobretudo sobre a Cultura das Crianças Mbya. Há coisas que só as crianças sabem, há coisas que elas sabem de maneiras diferentes das que os adultos sabem (“Não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes! – Paulo Freire). O objetivo de minha pesquisa era justamente identificar a existência de uma dimensão simbólica própria e exclusiva das crianças e jovens Mbya. Aliei a fotografia, o desenho, a redação, a contação de histórias, as trilhas e banhos de rio e especialmente o brincar à observação participante clássica da Antropologia e como resultado desta metodologia de pesquisa as crianças e jovens da comunidade criaram um livro, um “Diário” onde se apresentam a um extraterrestre, à crianças e jovens da cidade e a mim (ou seja, a qualquer estranho). Envio em anexo no mesmo e-mail este material produzido por elas para que a equipe da EPOK possam tomar conhecimento mas peço encarecidamente que não compartilhem com ninguém ou em nenhum tipo de espaço porque devido à questão de comprometimento ético tanto com a comunidade Mbya-Guarani como com o Conselho de Ética da Universidade este material não pode ser divulgado. Existe um número grande de educadores/as e pesquisadores/as olhando e escutando com muito carinho e sensibilidade as crianças do Brasil; penso que os trabalhos desenvolvidos nesse sentido tem muito a enriquecer ainda mais o trabalho que é desenvolvido com as crianças da EPOK. Finalizo com essas referências! – Lydia Hortélio: Etnomusicóloga e fundadora da Casa das Cinco Pedrinhas. – Lucilene Silva: Professora na Casa Redonda Centro de Estudos e Coordenadora da OCA – Escola Cultural. Deem uma olhada em sua tese de mestrado sobre a Música Tradicional da Infância e na publicação “Eu vi as três meninas” da OCA. – Gandhy Piorski: Artista plástico, teólogo, antropólogo e pesquisador da Cultura da(s) Criança(s). Tem muita coisa boa feita por ele mas não deixem de ver ao menos o livro “Brinquedos do Chão”. – Adelsin: pesquisador da Cultura da(s) Criança(s), membro da Casa das Cinco Pedrinhas. Ele tem uma série de livros que se chama Barangandão que é um compilado de brinquedos que ele aprendeu a fazer com as crianças do Brasil. No Barangandão Arco-íris o passo a passo da criação de vários brinquedos de crianças dos interiores de Minas Gerais e Bahia, no Barangandão Natureza o “manual” para a criação de vários brinquedos com elementos naturais. – Território do Brincar: série de curtas documentários e também dois longas, ótima referência para o estudo da Cultura da Criança! – Vejam o documentário Mitã! https://www.youtube.com/watch?v=xiUbI17eNfE – Caso tenham interesse no estudo mais teórico sobre a agência das crianças sobre suas culturas e sociedades recomendo algumas antropólogas que vem consolidando a Antropologia da Criança como campo de estudos no país: Antonella Tassinari; Clarice Cohn, Angela Nunes.
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