Matéria publicada no site www.itausocial.org.br sobre o projeto Ubuntu — Tempo de Regar Esperança
Na cidade de Goiás (GO), iniciativa abriga espaço cultural e escola, com ações pautadas por ancestralidade, meio ambiente e cultura da paz
Por Lidiane Barros, Rede Galápagos, Cuiabá (MT)
Junto a um baobá “criança”, uma árvore nativa da África conhecida como uma das mais antigas do planeta, a garotada se conecta com a ancestralidade em momentos de conversa nos quais os saberes tradicionais são valorizados e cultivados. A semente veio do continente africano e vingou no local que outrora era um terreno baldio e pedregoso. Com a força da coletividade, o vazio e a aridez foram ocupados por gente, plantas e construções tradicionais. Cada centímetro foi conquistado com a potência da arte e o desejo de mudar o mundo.
Esse lugar é a organização da sociedade civil (OSC) Vila Esperança, localizada em uma região de transição entre o centro histórico e bairros periféricos de Goiás (GO), cidade também conhecida pelo nome de Goiás Velho, antiga capital do estado, fundada ainda no período colonial. Desde 1991 a OSC vem sendo cultivada por sonhos do antropólogo e educador Robson Max junto com outros ativistas que se dedicam a, como ele diz, “reflorestar” corações e mentes. “Só tive a ideia; ninguém faz nada sozinho.”
Sem ajuda do poder público, o primeiro núcleo, formado por artistas de teatro, realizava turnês na Europa e tudo o que era recolhido se convertia em fundos para a aquisição da área. “Era um terreno baldio, íngreme, sujo, mas dessa pedreira fizemos um jardim e recuperamos a mata nativa”, conta Robson.
Desde o primeiro momento, a intenção do grupo era trabalhar com educação, cultura e questões dos direitos humanos, tendo ainda como foco garantir o protagonismo infantil e o juvenil. Hoje, a Vila Esperança abriga o território das vivências, que inclui a comunidade do entorno, e a Escola Pluricultural Odé Kayodê, reconhecida nacional e internacionalmente devido a sua metodologia inovadora.
Tanto as atividades de arte-educação quanto a escola, neste ano, podem contar com o incentivo do edital Fundos da Infância e da Adolescência (FIA), graças à aprovação do Ubuntu — Tempo de Regar Esperança. A inscrição foi realizada pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Goiás (GO). O edital é parte do programa IR Cidadão, que incentiva os colaboradores do Itaú a destinar parte de seu imposto de renda devido aos Fundos da Infância e da Adolescência (FIAs). No preenchimento da declaração do imposto, qualquer contribuinte pode destinar até 3% do valor devido aos FIAs, ação que também é estimulada pelo Itaú Social.
“Ubuntu é um nome inspirado por uma filosofia africana zulu que traz sentidos múltiplos de humanidade”, explica Adriana Campelo, coordenadora do projeto e suplente da secretaria do CMDCA.
Adriana também integra o corpo discente da escola Odé Kayodê, que, no idioma africano iorubá, significa “o caçador trouxe alegria”, marcando o momento da partilha do alimento em uma festa coletiva.
“Na escola as diferenças aparecem. Ensinamos que é preciso respeitá-las. O conhecimento vem da vivência, do encontro com outras narrativas. E, assim, nossos alunos se desenvolvem.”
A escola está atendendo 43 alunos entre a educação infantil e o 5º ano, no período matutino. No período da tarde as crianças têm acesso a atividades artísticas e culturais. Destas, participam jovens da comunidade e também os atendidos pela Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).
A metodologia da Odé Kayodê é tão relevante que ela integra um grupo de apenas 100 unidades de ensino de todo o país com o selo Escola 2030, que atuam como laboratórios de inovação para uma educação integral e transformadora.
De outro lado, a Vila Esperança atende também a comunidade, que pode usufruir de projetos diversos, como o CineVila, que exibe filmes pautados por questões dos direitos humanos, uma brinquedoteca e as vivências culturais afro-brasileiras, indígenas e de diversas tradições milenares. Em um projeto pautado pela comunicação, os pequenos criam e gravam o programa Rádio da Vila Esperança, que é retransmitido em emissoras da cidade, principalmente, a Rádio Comunitária Vila Boa FM. As crianças também estão escrevendo um e-book sobre violência contra as mulheres.
Robson ressalta que parceiros são essenciais para que as ações da Vila Esperança continuem florescendo. “Afinal, reconhecimento não se traduz em suficiência econômica. E os recursos do FIA nos trazem a possibilidade de continuar existindo, já que a pandemia multiplicou as dificuldades. Celebramos, pois temos um trabalho de décadas e foi a primeira vez que houve um movimento oficial de apoio concreto.
Em uma cidade colonial, onde nos posicionamos como uma força decolonial, o fato de sermos incluídos pela prefeitura mostra que estamos conquistando respeito. Agora vamos ampliar nosso diálogo com as diferenças.”
Para Robson, faz tudo valer a pena ver, retornando com os filhos, os meninos que passaram pela Vila. “Nessa luta é gratificante a gente continuar existindo, se mantendo em pé e gerando memórias felizes às crianças que por aqui passam.”
Um dos meninos que passaram por lá é Samuel Ricardo de Sá, 39 anos. Ele testemunha que a vivência foi tão importante que agora a Vila Esperança voltou a fazer parte da sua realidade. “Na primeira vez em que entrei na Vila eu tinha 11 anos. Hoje, meu filho de 7 anos está matriculado lá e, no segundo semestre, minha filha de 4 vai ingressar também”, orgulha-se. Ele, que participou das atividades culturais como o grupo de teatro e dança-terapia até os 17 anos, assumiu integralmente o fazer artístico e a profissão de artesão, produzindo máscaras e objetos inspirados pela cultura africana.
“Eu tive muito privilégio, pois à época estudava em escola pública, ensino formal. E a Vila me trouxe essa questão ativa da educação que preza pela vivência cultural, pelo que podemos aprender com nossos ancestrais.” Com os pais aposentados, sua família tinha uma renda mensal média de dois salários mínimos. Ele acredita que não teria tido acesso a um mundo tão vasto se não estivesse integrado ao projeto.
“Foi essencial para a formação da minha identidade, pois me declaro negro. Somos criados numa sociedade preconceituosa. O racismo também nos afeta, mas eu tive a oportunidade de ouvir histórias e aprender com elementos, simbologia e a cultura africana, especialmente a iorubá. A ancestralidade é muito presente. A Vila tem até uma festa dos avós, inspirada pelo mito da criação do mundo por Nanã”, relata. “A gente aprendia sobre a história social do Brasil, a questão da intolerância religiosa, do racismo e de como poderíamos ajudar a combatê-los.”
Em 2017 Samuel ingressou no curso de artes visuais do Instituto Federal (IF) e agora retorna como colaborador da Vila, ministrando oficinas. Assim, a Vila Esperança continua florescendo, sempre enfatizando a contribuição imensurável dos povos originários e tradicionais à constituição do Brasil. Apostando no poder transformador da cultura da paz, incorpora à educação temas urgentes à realidade brasileira, como a defesa das lutas dos guardiões das florestas — indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhos — e contra a intolerância religiosa, o racismo e a homofobia.
Matéria publicada no site www.itausocial.org.br sobre o projeto Ubuntu — Tempo de Regar Esperança